Vida Rebobinada



Tá um sol de rachar, pensa Jambrósio ao olhar pela janela da biblioteca. Vou sair pra almoçar. Entra no carro, que ferve e solta fumaça ao abrir a porta. Liga. Sai com o seu veículo popular velho e cheio de problemas, como ele mesmo. O trânsito é infernal. Cada pessoa dentro de seu mundinho particular. Alguns roendo unha. Outros suando com a mão no volante. Tem até uns que vasculham desesperadamente seus celulares à procura de algum significado pra suas vidas de merda. O sinal abre e dispara a sinfonia ensurdecedora. O ar, fumacento. O asfalto treme aos olhos. Puta calor! Jambrósio estaciona numa vaga do supermercado que tem um restaurantezinho no andar de cima. Pega a fila pro quilo. Faz seu prato e vai sentar sozinho numa mesinha de canto. Olha para a quantidade de comida que não justifica o preço caro. O gosto também não. Acabado o almoço, ele enfrenta novamente a batalha quente e barulhenta do tráfego. Chega novamente na biblioteca, da qual é funcionário. Repete essa rotina todos os dias úteis da semana. Sua vida torna-se assim muito útil, muito significante. Quase pula de alegria ao refletir sobre sua condição de ser humano, tão importante para o Universo! Nossa, que legal! Adora chegar em casa e ver as notícias do dia, comentadas por especialistas de todos os tipos. Vê algum filme repetido pela centésima vez (faz diferença?); os filmes parecem meio iguais. Assiste a um jogo. Entediante. Mas ele está feliz, porque poderá repetir essa rotina a vida inteira! Quer coisa melhor?! Vai dormir com um sorriso na boca. No meio da noite, sonha com vermes e ratos. Acorda de manhã. Um banho levanta qualquer um! Vai pro trabalho. Toma um café. Que vida plena e digna! Não quero morrer nunca! Só quero repetir, repetir, repetir e repetir! É tão bom! Rebobinar é viver! Se, ao menos, eu tivesse uma pílula daquelas de filme de espião…

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