Pão Dormido


O pão estava com muito sono. Já tinha amanhecido lá, no balcão da padoca e não havia sido tocado por mãos humanas nem uma vez depois de tirado da fornalha. Passou a noite inteira ali. Conversou um pouco com os outros pães restantes, mas eles queriam dormir e logo mandaram ele calar a matraca. Ficou quieto, triste e pensando no que aconteceria com ele no dia seguinte. A madrugada demorou a passar.
Tinha saído do forno lá pelas sete da noite. A última fornada! Poucos clientes compraram poucos pães. Não chegou a vez dele. A padaria encerrou suas atividades do dia. Fechou-se o pesado portão. Estabeleceu-se um breu sepulcral no recinto. Os pães, habitantes do cestão desprezado, tavam se cagando de medo, mas logo acostumaram-se aos seus destinos e decidiram dormir para a noite passar mais rápido e a manhã conclusiva chegar de supetão e ninguém ter tempo de chorar, suplicar ou implorar diante do fim certo e dramático. Mas aquele pão não conseguiu dormir. Tornou-se um pão dormido sem ter dormido de fato. Era um pão amanhecido com olheiras. Por fim, iniciou-se o dia, as portas foram escancaradas, o padeiro bigodudo entrou falando alto. Novos pães seriam assados. O homenzarrão pegou a cesta de ontem, onde estava o pão insone, e despejou o grupo de quinze pães dormidos, que agora estavam bem acordados, numa imensa tábua usada para cortes e serramentos. Foram todos fatiados por uma gigantesca faca de pão, que reluzia à luz da lâmpada fluorescente do teto da cozinha. Depois, colocados em uma assadeira antiga, untados com azeite e polvilhados de orégano. O pão (que já não era mais pão, apenas um lembrete do que tinha sido) encontrava-se num estado de estupor, não reconhecia mais os companheiros remanescentes de sua fornada, tentava encontrar seus pedaços, olhava ao redor e via apenas fatias e mais fatias dispostas em fileiras. Abriu-se a porta do forno. Esse ele não conhecia. Devia ser o forno final. Aquele de que tanto falavam. O derradeiro assamento no qual o resto dos pães de ontem, agora cortados em inúmeros pedaços, transformaria-se em algo novo. Algo que o pão não havia imaginado. O produto final da fornada: a torrada.

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