Quem Mexeu no Meu Saco?

Dois ratos, esquecidos pela humanidade, vagam pelos cantos sujos da cidade grande.

À procura de uma pedra de crack ou, ao menos, uma dose de cachaça, andam desvairados, submersos num pânico constante; trêmulos, palpitantes, cambaleantes.

A rua parece um labirinto, cheio de obstáculos mortais. De um lado, um policial, com um cassetete girando eternamente em busca de um crânio perdido. Do outro lado há mais viciados, ávidos por dinheiro fácil, com sangue fervente.

A madrugada chega. As sirenes tocam. Fumaça de tiros. Barulho de gritos.

Os dois ratos tentam achar um lugar pra dormir. O primeiro rato é mais otimista, acha que sairão dessa e encontrarão uma gigantesca pedra de crack, prontinha pra ser fumada. O segundo rato já é mais pessimista, pensa que a qualquer instante terá sua cabeça estourada por um guarda municipal espumando de ódio.

Não há lugar seguro. Quase todos os locais estão ocupados por outros noias. Ruas e mais ruas, extremamente fétidas, permanentemente perigosas. Nada por enquanto. Procuram mais um pouco, a hora adentra profundamente nas trevas. Parece que estão perto. Então acham um beco vazio, seco e silencioso. Botam seus sacos no chão, contendo apenas uma peça de roupa ou outra, mais trapos que vestimentas. Jogam dois pedaços de coberta no cimento cinza da calçada e deitam-se exaustos. Enfim, dormem.

O primeiro rato sonha tranquilo com sua dourada rocha divina. O segundo rato tem pesadelos de farda.

Há um estrépito noturno. Como se alguém estivesse espreitando. Movimentos nervosos, algo é revirado. O segundo rato acorda espantado e logo vê sua tralha bagunçada; dá um grito: QUEM MEXEU NO MEU SACO???

Nenhuma resposta. O primeiro rato desperta sobressaltado, O QUE HOUVE?.

O rato pessimista vai olhar seus poucos pertences e vê que não há mais nada ali, apenas seu saco vazio virado do avesso. Senta no meio-fio e chora. 

O rato otimista olha seu saco e vê que está tudo ali, não foi mexido; suas duas camisetas rasgadas encontram-se cuidadosamente embrulhadas uma à outra, como antes. Senta-se no meio-fio, aliviado.

O primeiro rato planeja voltar à busca pela pedra desejada logo que o sol raiar.

O segundo rato desiste de fazer qualquer coisa. 


É manhã, o sol nasceu. Rato 1 sai em disparada.

Rato 2 caminha lento, pensando. Seu amigo já desapareceu no horizonte. 

Rato 2 reflete, filosofa. Matuta sobre os acontecimentos do passado, do presente e do futuro. Qual é o motivo de sua existência? É a busca pela pedra? É apenas dormir e acordar vivo? Não sabe. Não consegue saber. A única coisa que ele compreende é o sorriso do guarda da esquina. Um sorriso sedento de sangue e entranhas. Um sorriso que revela o desejo de aniquilar, de trucidar, de destroçar. Um sorriso que responde qualquer dúvida que Rato 2 tem sobre a vida e sobre a morte; responde sobre sua condição, a condição do Rato 1 e a condição de toda a Terra. Um sorriso que atravessa-lhe a alma provocando uma dor lancinante em todo o seu ser. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Portais de Notícias

Fluição Desbaratada

A Morte do Punheteiro Viajante