Existencialidade

 



Eu queria viver de baboseira. Escrever um monte de idiotices e ganhar salário. Num jornal ou periódico qualquer. Dizer bobagens instruídas ou pedantes mesmo. Tem de monte.

Esses dias eu vi um colunista andando na rua. Ninguém sabia quem era, mas eu sabia. Tava meio disfarçado, com um boné e óculos de sol, mas eu o reconheci. Ele caminhava displicentemente, como se a vida fosse uma maravilha. Olhava ao redor, tudo lhe agradava. Agradecia a mulher que lhe vendia flores. Saiu com um buquê duma floricultura.

Eu vi tudo isso. Vi tudo isso porque o segui. O segui desavergonhadamente, mas ele nem se deu conta, porque anda sem medo, confiante em sua vida segura e “plena”.

Será que ele daria essas flores de presente? Que flores eram? Não conheço flores, não sei dizer. Eram amarelas. Só isso posso dizer. Deviam cheirar algo nesse sentido. O que cheira amarelo? Milho? Ouro? Mijo? Sei lá... e realmente não importa. Apenas divago. Mas não vago. Sigo. Seguir é uma ação direta. Uma ação pensada. Responsável. Determinada.

O colunista pegou um Uber. Eu entrei no meu carro e segui o Uber. Ele parou num prédio. Num bairro meio chique, descolado. O colunista ia entrar, quando eu o abordei e disse que era um grande fã. Suas crônicas revelavam o âmago do pensamento contemporâneo, com um quê de urbanidade moderna, ou qualquer coisa que isso signifique...

Ficou animado e, surpreendentemente, me convidou para tomar um café em seu apartamento pra discutir os caminhos da literatura moderna de tabloide.

Aceitei, meio sem jeito. Só tinha seguido esse cara por curiosidade mórbida. Porque sei mais ou menos a área em que ele mora e desprezo mais ou menos a área em que ele atua.

Leio suas crônicas diariamente, num gesto masoquista de autoflagelação. Masoquista, porém meio sádico também, internamente. Há um certo prazer em notar a miséria artística e criativa de seus textos. Mas ele faz sucesso. De certa forma é um “hype” do momento. Escritor moderno, de trinta e poucos anos. Trabalha num jornalão. Aparece na mídia. Participa de programas de tv e tá sempre bombando nos podcasts mais famosos. É um “influencer” intelectual. Pedem sua opinião pra tudo. Frequenta festas requisitadas, come as mais badaladas... Nem sei o que esse cara tá fazendo, morando aqui ainda, nesse bairro “normal”.

Nono andar. Apartamento bem grande. Cheio de coisas. Aparatos modernos e bugigangas raras. Pop art transbordando.

Abriu as janelas e não vi mais nada... Peguei ele pelo colarinho, na nuca, e pelo cinto, na bunda. Levantei do chão, numa força que eu não sabia capaz. Atirei-o pela janela. Ele voou bonito.

Caiu em cima do portão do prédio. Na frente da portaria. O baque foi tão violento que ele ficou enfiado nas grades, atravessaram sua cintura, revelando umas tripas brilhantes e inundando de sangue toda a calçada.

Ele estava assim, de bruços, com a cabeça encarando o pavimento, e os pés logo acima do canteirinho da entrada.

O porteiro saiu muito assustado e ligou imediatamente pro 190. Não havia o que fazer. Lá jazia a mente mais brilhante desta era. O arauto da juventude, o filósofo da milleniumnidade.

Fiquei olhando pra baixo. Já havia uma aglomeração. Todos reconheceram o defunto. Gritos e murmúrios de lamentação encheram a rua.

Peguei o buquê de flores e desci. Atravessei a pequena multidão no hall e caminhei em direção à cena trágica. Coloquei as flores ao pé do morto e me afastei.

Andei confiantemente até o meu carro, que estava estacionado ali perto. Fui embora com um sorriso no rosto. Não sei por que fiz o que fiz, mas fiquei feliz.

 

 

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