Circundando as Férias

 



Mais um dia de trabalho comum e normal. Heitor cansou de pensar. Sua mente divagava sobre o fim de semana. Estava perto das férias. Planejava ir com a família para um passeio na praia. Já tinha tudo escolhido: casa, número de dias, até as refeições.

Sentou-se à mesa do escritório. Sua faina era ordinária mas pagava bem. Fazia a mesma coisa todos os dias, era tudo automático. Não precisava planejar, como nas férias. O trabalho seguia num movimento peristáltico infindável.

Colado na cadeira, Heitor suava, mesmo com o ar condicionado no máximo. Empapuçado de um ano que já acabava. Ano ameaçador que, no fim, revelou-se como todos os outros, acabou rapidinho.

Trocava mensagens com sua esposa, animada. As crianças já estavam de folga. A vida familiar era uma beleza clichezenta e nostálgica. Até quando durariam os feriados, festinhas de aniversário e fins de semana casuais? Quanto tempo restaria até esse porta-retratos rachar e desbotar?

A dúvida sempre acompanhava Heitor. Sua vida parecia uma repetição de tudo o que já tinha visto nos outros. Conseguia pagar as contas, era casado, pai, tinha uma casa boa. Conquistou tudo o que havia almejado. Mas a dúvida sempre estava lá. E se? Mas se?

Queria ter uma amante, mas não tinha colhões pra isso. Algumas mulheres davam bola pra ele, mas não passava de brincadeirinhas maliciosas. Não tinha coragem pra tomar uma atitude. Preferia continuar com a vida rotineira de pai de família.

Todas as dúvidas pairavam sobre sua cabeça. Existencialmente encontrava-se no limite o tempo todo. A máscara fria que vestia estava sempre prestes a derreter. Será que seria hoje?  

Era uma sexta-feira. Duas da tarde. Quente. Muito quente. Pensamentos conflitantes borbulhavam na mente fervilhante de Heitor. Uma mosca pousara em sua mesa. Ficara lá, sem se mexer. Ele observava a imperturbável criatura andar sobre seus papéis muito importantes. A mosca passeava alegremente, sem levantar voo, apenas caminhava tranquilamente por todo o perímetro, como se estivesse de férias.

Heitor pensou, é isso, a mosca está de férias. Ela deve ter planejado toda aquela volta acrobática por sua mesa. Deve ter sonhado com as brancas folhas preenchidas por inúmeras palavras indecifráveis. Ela deve ter trabalhado o ano todo pra isso.

Riu alto, Heitor. Pegou uma revista velha. Enrolou-a. Mirou. A mosca continuava incólume, concentrada em seus afazeres recreativos. Num átimo desferiu o golpe fatal. A coitada morreu esmagada, sem nem saber o que aconteceu.

Agora ele estava mais calmo. Aliviado. Sem dúvidas. Sentiu um frescor por todo o corpo e parou de suar. A matança produziu um efeito calmante, prazeroso, quase afrodisíaco. Só pensava em ir pra casa, encontrar sua mulher.

Heitor saiu mais cedo, afinal, era sexta-feira. Entrou no carro. Disparou em direção ao lar. Estava tão eufórico que não percebeu o sinal vermelho. Passou direto e foi pego em cheio por uma carreta que vinha com tudo no cruzamento. Nem viu o que aconteceu. Morreu na hora.

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